Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Luís Levy Lima
Ponto de Encontro

Há lugares que nos ligam ao que somos, às nossas emoções.  

Que evocam os valores em que acreditamos e que gostaríamos de ver replicados no mundo.  

Há lugares que são casa.  

Portugal tem sido porto de muitos atracos. Um puzzle composto pelas trocas, ocupações e cruzamentos de vários povos.  

Dos fenícios aos árabes, passando pelos cartaginenses, pelos povos celtas, romanos, germânicos e mouros, Portugal tem no seu ADN a diversidade.  

A herança de culturas tão distintas expande as nossas fronteiras e, desejavelmente, os nossos horizontes.  

Lisboa tem em si tatuadas todas essas impressões.  

Lisboa é tão europeia quanto africana, árabe, asiática e, cada vez mais, americana.  

Lisboa é Criola e, deste lugar, vamos partir para tantos outros, escolhidos pelos nossos protagonistas, para percebermos os seus contornos.  

Este Ponto de Encontro aconteceu no Centro Cultural de Cabo Verde, na rua de São Bento, um dia antes da abertura da dupla exposição Djuntu.

Eu não podia chegar mais cedo, o Luís não podia sair muito tarde, mas as conversas têm o seu tempo próprio, são caprichosas e esta demorou-se nos porquês, nos detalhes e declarou a sua intenção de próximos capítulos.

Djuntu são duas exposições ligadas pela minha relação com Cabo Verde. No primeiro piso homenageio os músicos que mantiveram a minha paixão por Cabo Verde acesa enquanto eu não pude conhecer o país. Eles são, e foram para mim, os grandes embaixadores da cultura cabo-verdiana.

No segundo piso é a minha impotência, durante a pandemia, de não poder ir lá. Eu sou a combinação dessas duas experiências. É das minhas exposições mais pessoais.

Eu quis fazer isto aqui porque eu acho que este espaço pode acolher muito mais do que exposições. É um espaço de esperança e tem potencial para fazer um cruzamento entre toda a cena artística e as diferentes pessoas e ser um lugar de representação. Eu acho que devia ser mesmo um centro Lisboa Criola.

Luís Levy Lima nasceu em Portugal e é fruto de uma paixão que ligou Espinho a Santo Antão.

A família da minha mãe é do Norte e não aceitou muito bem o namoro dos meus pais. Reagiram com estranheza e a relação foi sempre um pouco conflituosa. Mas a minha mãe e a minha avó amavam o meu pai e todas as suas latitudes. A minha mãe vivia Cabo Verde de forma intensa. Era uma paixão. Ela era designer e colocou a sua arte ao serviço da comunicação da cultura cabo-verdiana. Apesar de ainda não ter lá ido, colaborou com muitos artistas e vibra com a música, a gastronomia e as suas gentes.

Do pai e dos tios herdou o à vontade para navegar entre tintas, telas e pincéis, da mãe a vontade de conhecer Cabo Verde e celebrar a sua cultura.

Luís passou grande parte da sua infância e adolescência a sonhar com essa viagem e à procura do arquipélago em Lisboa.   

Eu cresci a procurar contacto com Cabo Verde. Não podendo lá ir, eu ia ao Espaço Cabo Verde, ao B’Leza, ao Enclave, à Cova da Moura, ao Fim do Mundo. Eram os meus lugares de conexão.  Eu não conhecia e queria saber, perceber e sentir a terra que o meu pai tinha como sua. Lá em casa não se falava muito sobre isso.”

Entre a vergonha e o orgulho, lentamente, o silêncio deu lugar a sessões de slides e a tímidos mas intensos relatos sobre aquela terra que estava distante mas que era muito presente.

A diáspora cabo-verdiana é imensa. Eu sempre quis conhecer a minha família, mas só aos 15 anos é que conheci a minha tia da Suiça, a minha tia holandesa, o meu tio do Canadá.

Eu sempre me soube como português e cabo-verdiano. Orgulhosamente as duas coisas. Para seres criolo não precisas de corresponder à ideia que as pessoas têm de um criolo. Não precisas de te comportar de acordo com as tradições que atribuem à cultura africana.

Ser criolo quer dizer muita coisa. Podemos ter contacto com o ocidente e uma vivência internacional, mas termos orgulho nas nossas raízes. Sermos uma ponte entre o passado e o futuro, aceitando a diferença das nossas experiências e assumindo a nossa contemporaneidade.

A Lisboa Criola já é uma realidade hoje em dia.

Um esboço de uma realidade que ainda precisa de muita tinta para se tornar cenário permanente.

Claro que ainda há muita coisa para mudar, ajustar, mas, tendo em conta o que o meu avó conta, o que os meus pais viverem e o que eu vi, andámos bué. Estamos a viver o que eu sonhava quando era miúdo. Na altura, ser criolo não era um segredo mas a prática era muito bem mantida, reservada para as festas particulares, no seio da família e nos lugares criolos.

Hoje vejo a cultura africana em todo o lado, nas rádios, nas televisões, nos palcos. Isso é uma vitória. A criolidade deixou de ser vivida com vergonha e passou a ser vivida com orgulho.  Continuo a lutar diariamente por não ter de estar constantemente a justificar o porquê de ser branco e ter caracóis. Perguntam-me muito, o que é que eu sou. Ao início isso ofendia-me. Eu não tinha de ser uma coisa ou outra. “- Tu és tu, eu sou eu. Estás bem? És feliz? Vives com gosto? Então estamos bem.” 

Mas depois percebi que essa diferença que apontavam era a minha riqueza. Era o que me distinguia e valorizava. Os outros é que tinham algum problema com a sua identidade. 

As questões sobre a sua identidade resolveu há muito, mas demorou a aceitar que o artista plástico que sempre o habitou tomasse as rédeas do caminho.

Eu sempre pintei e sabia que tinha de pintar. Mas tinha medo de me assumir como artista plástico e não fazer jus ao legado familiar. Tinha medo de não corresponder e de não conseguir contribuir para a estabilidade financeira da minha família. 

Eu não queria ter de pintar porque precisava de dinheiro. Eu vi isso destruir as pessoas, o seu trabalho, o seu valor.   

Eu queria ser honesto comigo, com os outros e com a minha arte. Queria ser feliz mas também conseguir garantir a segurança da minha família.

Eu neguei-me muito tempo disto e, com a ajuda da minha mulher, percebi que eu não tinha de ser como os outros, que a estabilidade financeira não se pode sobrepor à estabilidade emocional, que ninguém consegue controlar tudo. Acabei por conseguir acreditar na pintura quando finalmente percebi que podia acreditar em mim. Eu sou eu.  

E é nessa experiência de existência singular que se inspira para criar.

Eu não procuro a inspiração. Eu vivo-a, eu sou. A maioria dos meus trabalhos dou por mim a executar. Eu pinto porque preciso de pintar. Preciso de dizer coisas que me vão ocorrendo, acontecendo.

Há três elementos que estão sempre presentes no meu trabalho: animais, crianças e mulheres. São as minhas paixões. Gosto de retratar os animais como metáforas, como um espelho dos nossos comportamentos. Mas eles são puros, fazem parte da natureza e não se querem sobrepor a ela. As crianças são incríveis na sua capacidade de sonhar, imaginar, criar. E as mulheres são seres fascinantes. Eu fui criado por mulheres furacão. As mulheres são o motor de tudo.  

Pinta porque precisa de comunicar e são muito claras as mensagens que gostava que as suas telas ecoassem.

Eu gostava de inspirar muita gente. Gosto muito de ir a escolas, partilhar a minha história, mostrar o meu trabalho e falar do meu percurso, para mostrar que é possível seguirmos os nossos sonhos. Mostrar que é possível viver da arte. Eu gostava que me tivessem dito isso em criança.

Mostrar que vale a pena sonhar.

Gostava que não olhássemos tanto para as nossas diferenças mas para o que nos pode fazer andar para a frente. Que nos focássemos no que realmente interessa, estarmos juntos, sermos felizes e deixarem de olhar para o que nos diferencia. 

No fim do dia, é muito melhor estarmos juntos e celebrarmos o que nos aproxima.  

 

Nu sta djuntu!

Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Selma Uamusse
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Cláudia Semedo, atriz, apresentadora, licenciada em jornalismo, mestre em empatia. Todos os meses, Cláudia encontra-se com uma pessoa diferente, e de uma conversa apresenta-nos uma partilha.
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Estética
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Interpretação
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