Há lugares que nos ligam ao que somos, às nossas emoções.
Que evocam os valores em que acreditamos e que gostaríamos de ver replicados no mundo.
Há lugares que são casa.
Portugal tem sido porto de muitos atracos. Um puzzle composto pelas trocas, ocupações e cruzamentos de vários povos.
Dos fenícios aos árabes, passando pelos cartaginenses, pelos povos celtas, romanos, germânicos e mouros, Portugal tem no seu ADN a diversidade.
A herança de culturas tão distintas expande as nossas fronteiras e, desejavelmente, os nossos horizontes.
Lisboa tem em si tatuadas todas essas impressões.
Lisboa é tão europeia quanto africana, árabe, asiática e, cada vez mais, americana.
Lisboa é Criola e, deste lugar, vamos partir para tantos outros, escolhidos pelos nossos protagonistas, para percebermos os seus contornos.
Nem só de notas alegres se compõe um mundo mais inclusivo. A melancolia pode ser terreno fértil para uma reflexão profunda sobre os problemas da nossa sociedade e o pragmatismo uma bússola rumo às possíveis soluções.
Oi, Cláudia. Fazemos na estação da Damaia.
O lugar escolhido fazia adivinhar uma conversa dura. Valete é conhecido por esse olhar crítico sobre a nossa realidade e existência.
Escolhi este lugar porque é central. É onde as pessoas se cruzam. Mesmo que não sejas daqui rapidamente percebes que é uma zona pobre, de pessoas que trabalham muitas horas. É um centro de muitos povos imigrantes, abandonado, demonizado. E eu, que já ando aqui há 20 anos, que muito do meu rap parte daqui, faço essa representação, a de um povo marginalizado. Esta é uma Lisboa Criola excluída.
Há um movimento de uma lisboa misturada que não é nosso, não foi criado por nós. É um movimento de uma elite que não está atrelado a políticas de combate ao racismo, nem a um processo de emancipação destas comunidades periféricas.
Pode ser um início mas cabe-nos a nós fazer a nossa parte, que tem de ser mais combativa e confrontacional.
Como no seu rap, Valete fala do que vê.
em havido muito pouco progresso das nossas comunidades em Portugal, a todos os níveis. Há um fluxo migratório com mais de 40 anos e não aconteceu quase nada para a nossa emancipação. Mudou muito pouco.
O meu pai esteve cá 40 anos e eu não vi progressos na vida dele, na vida dos meus tios, na vida de ninguém aqui da zona, na verdade. Não vejo quase nada a acontecer para os negros aqui em Portugal.
Falemos então de caminhos.
Uma das coisas que mais me aflige a viver aqui é o facto de sentir que há um potencial humano incrível, capacidades intelectuais e artísticas impressionantes mas, mesmo assim, as pessoas nascem invisíveis e morrem invisíveis. Daqui não saem escritores, políticos, intelectuais, artistas porque esse caminho está vedado. Mas o potencial é inacreditável.
Havia aqui um bairro, o 6 de Maio, que tinha um grupo de miúdas que cantavam maravilhosamente bem, miúdas sem escola de canto, sem terem treino e que hoje, passados 20 anos, estão muito longe dessa área.
Em primeiro lugar acho que o problema é nosso. Nós temos de ter um projecto nosso de auto-suficiência. Há gente a pensar sobre isto e já há pessoas com projectos que devíamos conhecer melhor.
Acho que é muito difícil para o português branco cuidar de um problema do qual não sofre. Há muitas pessoas com boas intenções e que já estão há muito tempo a travar esta luta, mas faria muita diferença se tivéssemos mais negros em lugares de poder, em lugares de decisão, com essa preocupação. E é preciso dar lugar a um novo negro. Alguém com uma visão ampla sobre esta questão da emancipação, que saiba como construir uma comunidade, como gerir o nosso dinheiro. É urgente há muito tempo.
Uma urgência que sente como responsabilidade sua também.
Para mim ser rapper foi uma inevitabilidade. Eu cresci em sofrimento. A minha infância e adolescência foram tristes. Eu cresci sempre como o único negro entre os brancos. Eu era o que ouvia “ò preto, vai para a tua terra”, desde criança. Eu nunca tive forma de escapar, de passar despercebido.
Vivi 18 anos em Benfica e eramos a única família de negros naquela rua. Até ao secundário andei sempre em escolas onde era o único negro ou onde havia só mais dois ou três.
Eu precisava de comunicar, precisava de dizer o que estava a sentir. Encontrei essa plataforma no rap. Primeiro ouvi pessoas que viviam o mesmo que eu, identifiquei-me e quando comecei a fazer rap aproximaram-se outras pessoas que se identificavam com o que eu estava a viver.
No início eu representava-me a mim, estava a cantar as minhas angústias. A certa altura, não sei porquê, comecei a sentir a responsabilidade de representar alguma coisa.
Quando comecei a chegar a mais pessoas, elas também me delegaram essa responsabilidade de as representar. Não sei se estou confortável com isso, mas tenho vindo a fazer, à minha maneira. Tento representar o negro, o pobre, o marginalizado.
E que pontes faltam construir para que a centralidade destas periferias seja reconhecida, bem como a dignidade de quem nelas habita?
O hip-hop tem sido das plataformas culturais a que mais projecta figuras públicas que vêm de um contexto periférico.
É preciso fazer chegar esta narrativa de capacitação e sustentabilidade à comunidade negra. Para isso é preciso ter palco, espaço mediático que não temos. É um discurso de rotura.
Os rappers também têm esse papel, mas os que têm este discurso são marginalizados. Acabamos por nos tornar ilhas.
Quando o Chullage lança um Da Hype, não há uma rádio que passe, não há uma televisão que o entreviste. Precisamos desses canais. O Chullage é uma pérola que nestas condições não consegue afectar as pessoas. E tem muito potencial para as afectar. Estamos com pouca capacidade de comunicar com os nossos.
Actualmente o hip-hop está a preencher um espaço mais pop. O rap está a ficar esvaziado e até perigoso. Estamos com um problema climático grave, em que temos de alterar os padrões de consumo e o discurso destes rappers mainstream está a semear nos jovens comportamentos sexistas, homofóbicos, consumistas.
Está a acontecer uma coisa horrível, miúdos que vêm de uma comunidade marginalizada e que estão com um discurso na música que não tem nada a ver com o sítio de onde vieram.
Já temos alguns rappers que têm plataformas de visibilidade muito grandes e eles têm poder. Falta-lhes perceber isso, que têm poder, representam uma comunidade e podem transformar alguma coisa.
Era bom que eles prosperassem e crescessem, podíamos ver muitos benefícios nisso. Tu podes entrar alienado e sair diferente. Tenho essa esperança.
Esperança que é reforçada por projectos como esta plataforma.
A comunidade negra tem de perceber a importância de apoiar projectos que permitam a nossa representação, como Lisboa Criola, Bantumen, Afrolink. Podemos tentar mudar a forma como somos retratados na grande media mas é difícil. A internet já possibilita muita coisa e há muito pouco empreendedorismo digital negro. É preciso fazer o pessoal perceber que estas coisas têm muita importância.
Mas que esmorece perante a inexistência de estruturas.
Faltam-nos movimentos organizados capazes de mobilizar a comunidade.
A cidade trabalha muito para o individualismo. Afasta-nos do outro. Há pouca gente na cidade a fazer lutas colectivas. Há pessoas a fazer lutas colectivas com interesses individuais. A política na cidade é muito difícil de praticar.
A curto/médio prazo não tenho esperança. Não acredito que possamos criar uma comunidade negra forte. O que eu vejo a acontecer muitas vezes é que quando um negro se destaca, como nós não temos estruturas que o possam proteger e até acolher financeiramente, facilmente passam para o outro lado. Quando começas a fazer sucesso, percebes que tens de suavizar o discurso para agradar a um maior número de pessoas.
O meu espírito é melancólico porque o centro deste tema é o racismo e as pessoas ainda não sabem o que é o racismo. Mesmo pessoas com referências intelectuais. Estamos com uma dificuldade grave em explicar o que é o racismo. Muitas vezes ficamos presos num debate porque conceitos como racismo estrutural, pessoas racializadas, são difíceis de absorver. Se encontrarmos as pessoas que consigam fazer essa tradução, para brancos e negros, serão valiosas.
Mas o caminho faz-se de pequenos passos.
Eu acredito mesmo no projecto de auto-suficiência. Eu vou às mercearias de pessoas negras aqui na zona, o meu barbeiro é negro. É importante entender que o empreendedor negro, emprega negros. Se apoiares o empreendedorismo negro, apoias o emprego negro e isso já faz uma diferença brutal.
Façamos essa diferença.