Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Pedro Mafama

Há lugares que nos ligam ao que somos, às nossas emoções.

Que evocam os valores em que acreditamos e que gostaríamos de ver replicados no mundo.

Há lugares que são casa.

Portugal tem sido porto de muitos atracos. Um puzzle composto pelas trocas, ocupações e cruzamentos de vários povos.

Dos fenícios aos árabes, passando pelos cartaginenses, pelos povos celtas, romanos, germânicos e mouros, Portugal tem no seu ADN a diversidade.

A herança de culturas tão distintas expande as nossas fronteiras e, desejavelmente, os nossos horizontes.

Lisboa tem em si tatuadas todas essas impressões.

Lisboa é tão europeia quanto africana, árabe, asiática e, cada vez mais, americana.

Lisboa é Criola e, deste lugar, vamos partir para tantos outros, escolhidos pelos nossos protagonistas, para percebermos os seus contornos.

Hoje regressamos ao Intendente, a ideia é navegarmos para sul, vestidos a rigor, e desaguarmos no Restaurante Mondego. Como o rio, que é de todos os sítios por onde passa e bebe de todas as margens que toca, Pedro Mafama costura sonoridades com todos os condimentos que temperam a sua geografia interna.

Depois de nos receber com um sorriso franco e doce no largo que o viu crescer, levou-nos a conhecer a Alfaiataria Lassana Mane e o alfaiate Aladje, que o ajudou a tecer a roupagem certa para os seus concertos.

Há cerca de dois anos, quando comecei a ter concertos nos festivais de verão, eu e o Martim Alvarez fizemos uma série de cafetãs aqui com o Aladje. Eu sempre gostei de brincar com símbolos e quando usei a túnica muçulmana, uma peça masculina com conotações religiosas, pela forma como a adaptei, de repente, virou uma peça de roupa com um tom feminino, por ser um homem com um vestido longo.

Eu cresci aqui ao lado e, quando era miúdo, costumava vir aqui com a minha mãe comprar babuchas. A minha mãe foi algumas vezes a Marrocos e também foi ganhando interesse em perceber esta proximidade cultural entre Portugal e Marrocos.

Nós íamos à casa do meu avô, numa aldeia ao pé de Vila do Bispo, ligávamos o rádio e apanhávamos a rádio de Marrocos (era quase a primeira coisa que a minha mãe fazia quando lá chegávamos). Havia esse efeito de proximidade com uma cultura que estava do outro lado do mar.

Mas essa curiosidade transcendia o elo materno.

A minha família é de Lisboa e eu, enquanto lisboeta, sempre procurei entender as nossas origens. E perceber que não era por acaso que estava num sítio chamado Mouraria, despertou o meu interesse sobre a nossa história. Na minha casa cresci com estórias de misturas que quebravam a ideia do “nós e eles”.  Havia uma abertura e uma vontade de saber mais sobre outras culturas.

Uma vontade que marcou o seu caminho e o percurso artístico.

A empatia, a disponibilidade, seres educado sem fronteiras definidas, livre de pensamento... acho que essa mistura só pode resultar numa visão de um mundo mais global. E, para além da minha natureza, venho de uma família de artistas plásticos. Falar de um assunto tentando abordar diferentes perspectivas, era uma prática comum. Isso desenvolveu o meu músculo artístico.

Também estudei artes plásticas e o primeiro trabalho que fiz foi pegar num padrão tipicamente português, que tem o vermelho, verde e amarelo e imprimir como se fosse um tecido africano, quase bandeira. Um novo contexto dá-nos linguagens muito distintas. Interessa-me brincar e perceber que há coisas que têm uma conotação que podemos virar ao contrário muito facilmente. Foi o que fiz com os cafetãs, é o que faço ao arranjar e adornar a unha do dedo mindinho, virando do avesso o símbolo do macho português. Isso deixa as pessoas sem chão.

E, desejavelmente, fá-las questionar uma série de convenções e preconceitos.

Não estamos assim tão distantes e não somos assim tão diferentes uns dos outros. Olho para o mapa e vejo um degradê cultural e não esse conjunto de fronteiras que criámos.

Quando ouvi a Amália cantar o Calunga, parecia que ela era africana e, de repente, a distância entre Portugal e Angola encurtou vertiginosamente. E é engraçado perceber que o Fado tem influências africanas. É um tema controverso mas está no museu do fado e tudo. O fado vem do Lundu, a música dos africanos escravizados que foram levados para o Brasil e trazidos para Portugal. E se pensarmos no tema da saudade, no carpir a dor, a distância, a morte, faz algum sentido.

Quem mais gritou a palavra saudade do que uma pessoa que foi escravizada e levada para outro sítio, ou um mouro que perdeu a sua terra e viu-se obrigado a migrar, ou um judeu português que foi expulso e teve de ir para a Holanda, quem sentiu a palavra saudade mais do que essas pessoas.

Sempre quis esbater distâncias. Interessa-me criar pontes temporais, culturais, estéticas. Na música, uso o auto-tune para me ajudar a encontrar uma sonoridade tradicional. Levo a minha voz ao limite, com um instrumento super tecnológico e futurista, e, através do algoritmo, trabalho-a para procurar uma ideia de ancestralidade.

Quando junto os bombos tradicionais do Minho com padrões rítmicos afro-portugueses, esbato a distância entre o Minho e Angola num beat. Não é uma procura académica, é uma procura pelo belo que tem, consequentemente, uma mensagem política.

Uma mensagem de indivisibilidade que está muito presente no universo musical que construiu.

Eu tento criar um universo estético e musical que tem um lado muito autobiográfico, mas também é uma construção artística e filosófica daquilo que, neste momento, seria um mundo perfeito para mim. Eu não estou só a procura de fazer a melodia mais bonita, a melhor rima, a melhor poesia. É criar um universo onde tudo isso encaixa. E uma melodia “fadisticó-arabesca” encaixa com um design gráfico vermelho verde e preto que une as bandeiras portuguesa, árabe e africana.

No final do dia, a minha mensagem é de união. Ao esbateres diferenças estás a aproximar, mas o que me move é a poesia da subversão dos símbolos e a beleza de mandar abaixo os pilares da nossa cultura. Subverter significados, dizer coisas novas sobre certezas antigas e de tirar coisas do seu contexto e ver uma coisa nova.

Primeiro sou poeta, o significado político vem depois.

Se eu estivesse no terreno a fazer política ou acção social, eu teria de lidar com a realidade como ela é e trabalhar para a alterar.  Um poeta pode dar-se ao luxo de trabalhar sobre o que é a realidade para ele, subverter conceitos e passar mensagens empoderadoras.

Mensagens que encontram um eco perfeito no manifesto desta Lisboa Criola.

Quando te reconcilias com a tua história e com a tua cultura, a vida fica mais fácil. Olhares para Lisboa e gostares desta lisboa criola, é uma libertação. É ouvir a Amália a cantar “de São Paulo de Luanda me trouxeram para cá!/ Me trouxeram para cá!/A minha mãe chorava, Calunga!”, é ouvir o Mãe Preta da Maria da Conceição, que depois deu origem ao barco negro, que diz “enquanto que a chibata batia no seu amor/ mãe preta embalava o filho branco do senhor”, é dizer duas frases e perceber que quase um terço das palavras tem origem árabe.

Hoje, se nós eliminássemos a história africana, moura e judaica da história portuguesa, de repente, metade disto tudo desaparecia, como que por magia.  Para mim é isso: tudo o que comemos, a forma como falamos, o que vestimos, a maneira como nós agimos, as nossas ruas, vem tudo de uma mistura que está cá há mais de um milénio. Essa é a minha Lisboa Criola. Uma Lisboa antiga, muito parecida com a lisboa de agora. As influências estão cá e continuam a renovar-se. O que me inspira a criar e o que me estimula nesse passado é a estética.

Uma estética que tem tanto de sua como de ancestral.

A minha música e a minha estética são sempre autobiográficas. Desabafos íntimos de experiências próprias. Estou sempre a reproduzir-me em imagens. As referências que eu guardei aqui da graça, a cultura tradicional, a maneira como as pessoas se vestiam na minha rua, o chafariz de mármore, os azulejos da casa da minha mãe, a roupa pendurada no estendal. Depois há uma composição que mergulha em profundidade nesse triângulo criolo. Construo por cima dessas raízes.

E porque ninguém cria de estômago vazio, seguimos para a próxima paragem. É na Travessa do Forno que encontramos o Restaurante Mondego, um lugar onde as cozinhas portuguesa e marroquina confluem. Do bitoque ao Cuscuz de Borrego, surpreende-nos com uma deliciosa e harmoniosa convivência que a nossa distracção continua a considerar improvável.

Vim aqui pela primeira vez com o meu primeiro agente para comer um bitoque que, para além de barato, era espectacular e, por causa das cerâmicas que serviam de decoração ao espaço, descobri a história de amor entre um português e uma marroquina. Apaixonei-me pela naturalidade com que a ideia de tasca tipicamente portuguesa se cruzava com as tagines em exposição e os pratos marroquinos que eram servidos. Passei a vir cá regularmente pela diversidade dos pratos, a simpatia da família e por relacionar-se com o que eu admiro na cultura portuguesa... esta mistura natural de universos geograficamente distantes.

Terminámos a nossa viagem com vontade de ficar para o jantar e com a certeza de que este Pedro ainda tem muitos símbolos para subverter.

Tento não combater as definições com novas definições. Gosto de deixar tudo em aberto. Não quero combater uma bandeira com uma nova bandeira.  Não quero criar novas caixas. Prefiro ir minando as paredes das caixas onde nos encerramos.

Assunto encerrado.

Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Selma Uamusse
Comunicação
Cláudia Semedo, atriz, apresentadora, licenciada em jornalismo, mestre em empatia. Todos os meses, Cláudia encontra-se com uma pessoa diferente, e de uma conversa apresenta-nos uma partilha.
Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Isabél Zuaa
Expressão
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Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Luís Levy Lima
Inspiração
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Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Mariana Duarte Silva
Transformação
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Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Valete
Interpretação
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