Ponto de Encontro | Cláudia Semedo X Isabél Zuaa
Ponto de Encontro

Há lugares que nos ligam ao que somos, às nossas emoções.

Que evocam os valores em que acreditamos e que gostaríamos de ver replicados no mundo.

Há lugares que são casa.

Portugal tem sido porto de muitos atracos. Um puzzle composto pelas trocas, ocupações e cruzamentos de vários povos.

Dos fenícios aos árabes, passando pelos cartaginenses, pelos povos celtas, romanos, germânicos e mouros, Portugal tem no seu ADN a diversidade.

A herança de culturas tão distintas expande as nossas fronteiras e, desejavelmente, os nossos horizontes.

Lisboa tem em si tatuadas todas essas impressões.

Lisboa é tão europeia quanto africana, asiática e, cada vez mais, americana.

Lisboa é Criola e, deste lugar, vamos partir para tantos outros, escolhidos pelos nossos protagonistas, para percebermos os seus contornos.

O nosso encontro de hoje tem como patrono uma figura mítica de “crespos cabelos” e “boca negra”. Um gigante temível que cativou a minha simpatia por representar, para mim, uma parte muito importante da história que ficou por contar daquele que, para muitos, foi um dos feitos mais gloriosos do nosso povo.

Contadora nata das estórias que precisam de fazer parte da história, Isabél Martins Zuaa Mutange só podia ter escolhido este lugar.

O Adamastor (miradouro de Santa Catarina) é um lugar de encontro, de celebração e de muita inspiração. Quando vim estudar para Lisboa, no Chapitô e na Escola Superior de Teatro e Cinema, vinha para aqui ao final da tarde, respirar, ver o pôr-do-sol, olhar para o rio e encontrava sempre alguém. Havia improvisações de jazz, concertos de reggae, drum’n’bass. Passavam por aqui artistas internacionais que vinham cá partilhar a sua arte. É um lugar de muitas memórias boas.

É também um lugar de contemplação, onde podemos olhar para um horizonte mais vasto, o que me dá um sentido de esperança muito concreto. Há uma horizontalidade nas pessoas que frequentam este espaço. Pessoas saídas dos escritórios, estudantes, artistas de rua, turistas, pais com crianças, pessoas a passear animais. É um lugar muito democrático.

Um lugar que resume na perfeição o seu conceito de Criolidade.

É sermos atravessados por culturas que não são as nossas e, de alguma forma, nos conectarmos com elas. É uma troca de ancestralidades, um atravessamento carinhoso que nutre outros pontos que o preconceito não permite.

Zuaa é filha de um encontro, em Lisboa, entre Angola e a Guiné Bissau. A sua geografia interna é feita de muitos cruzamentos.

Eu cresci num lugar onde havia muitos cabo-verdianos, alguns moçambicanos, são-tomenses, guineenses de várias etnias, muçulmanos, brasileiros, ciganos, açorianos. Vivia numa casa onde sempre recebemos pessoas de muitas origens, sempre houve um trânsito intenso de pessoas de variadas latitudes.

 Eu sempre fui um ser que não se enquadrava em nenhuma coisa específica, mas que tinha todas aquelas coisas em mim. A família do meu pai achava que eu era muito angolana, a da minha mãe que eu era muito guineense, muito portuguesa. E eu era essas coisas todas. Gostava de comer arroz com iogurte, funge com arroz, bacalhau à brás.

Pela essência, pela personalidade, pelas experiências que fui tendo, era vista como diferente. Dentro de casa, na comunidade, nas próprias instituições. O facto de ser uma negra nascida em Portugal causa confusão nas pessoas. Eu não dizia que era portuguesa, dizia que tinha nascido em Portugal. A minha mãe é dali, o meu pai dacolá, encontraram-se em Lisboa e eu e os meus irmãos nascemos aqui. Uso muito a expressão Pretoguesa. É diferente nascer branco em Portugal ou nascer negro em Portugal. São convenções muito diferentes. Mas isso faz parte da história.

Uma história que nos foi sendo contada sem contraditório, sempre pela metade.

Quando comecei a pesquisar e a estudar, paralelamente à formação escolar que temos aqui em Portugal, percebi que esta mistura de corpos negros é muito anterior a esta ideia de que somos a primeira geração a nascer cá. Não somos. É uma ignorância colectiva. Nós tivemos muitos encontros violentos, forçados, que resultaram nessas misturas. Só muito mais tarde entendi o porquê do poço dos negros, da rua das pretas, das características dos que já cá estavam e dos que aqui nascem. Havia o mito da primeira geração a nascer em Portugal. Mas não sou. Não somos. Somos a primeira geração a reclamar essa igualdade. Na verdade, mais do que a igualdade é a equidade. Essa coisa de ajustar porque não partimos do mesmo lugar, não temos as mesmas oportunidades.

Muitas vezes, durante a minha formação artística, tive de explicar que os negros não eram aquela imagem clichê que eles tinham. Não. Nós somos múltiplos e diversos. Somos agentes activos das nossas narrativas. Eu não sou um estereótipo, uma personagem tipo, eu tenho subjectividade e a minha família também e muitas outras pessoas também. Eu não sou A preta maravilhosa, especial. Há muitas pretas e muitos pretos maravilhosos.

 

Eu lembro-me de escrever, no início da minha formação artística, que estava num não lugar. Quando fui para o Brasil e continuei a desenvolver esses trabalhos biográficos acabei por perceber que eu estou num “entre-lugar”. E isso é uma mais valia para mim, ser atravessada por todas essas culturas.

Comecei a olhar de forma mais madura, com um olhar mais positivo, menos ferida por não me sentir pertencente a lugar nenhum mas reverberar todas essas misturas. Isso não é um não lugar, é um” entre-lugar”, é uma potência, é bonito e é forte. E é a minha riqueza. Mas só alguns círculos é que têm a consciência dessa mistura.

E o que é que podemos fazer para alterar essas narrativas?

O trabalho é sempre do micro para o macro. Existem lacunas estruturais, temos de as reconhecer para pensar sobre, falar sobre e criar estratégias para. Mas nós sofremos do síndrome das pessoas boas. E as pessoas boas não gostam de ser questionadas sobre os seus valores, as suas acções. E enquanto não nos questionarmos, é isso que vai ficar a faltar. Tu vês, tu reconheces no outro, no mundo, mas dentro de ti não localizas esses preconceitos. Eu posso ir para a rua, gritar, fazer espectáculos mas as sementes têm de ser plantadas.

 É cansativo, é exaustivo, dói mas é necessário. Para os nossos filhos, os nossos sobrinhos, é essencial plantar essas sementes. E quem planta devem ser variadíssimos corpos. Não é um trabalho unilateral. É uma jornada colectiva. Enquanto negarmos,                                                                  não é possível resolver nada. Se não reconhecer as minhas sombras, não as vou poder trabalhar e iluminar. Se não reconhecermos esses apartheids não os vamos conseguir erradicar.

Começar a escrever os meus solos, que só apresentei em solo brasileiro, ampliou essa minha consciência. Permitiu-me identificar alguns sentimentos e enquadrar algumas circunstâncias. Acredito que no encontro com a arte tenha conseguido encontrar ferramentas para partilhar esse “entre-lugar”.

Muito antes, em solo português, mais concretamente no Zambujal, já a pequena Zuaa se expressava artisticamente, através daquelas que acredita serem as artes que mais a elevam.

Comecei a dançar aos 5 anos. Ainda não tinha entrado para a escola e já dançava. Fazia dança, cantava, fazia desporto. Tive uma infância muito saudável e muito feliz. Transitava por vários grupos. Sou de comunicação e afinidade muito fáceis. Falo com pessoas de todos os géneros, de idades muito diferentes, independentemente das suas crenças, credos ou circunstâncias.  

É a cantar e a dançar que eu mais me transcendo. Coloca-me num tempo diferente. Há uma liberdade. São coisas que faço para mim, muita pesquisa de música. Um dia quero transformar em performances mas são ideias, ainda que simples na sua complexidade, muito ousadas. Enquanto isso, em todos os projectos que tenho tento acrescentar a música e a dança. Para trazer mais humanidade e versatilidade para a personagem. Para dar mais camadas, mais riqueza.

Fez-se mulher, actriz e criadora. Da sua necessidade de se conectar com as actrizes negras que vivem em Portugal nasce Aurora Negra. Um espectáculo que criou com Cleo Diára e Nádia Yracema.

Eu tinha essa lacuna em Portugal, de me conectar com actrizes negras, parecia que estávamos cada uma no seu mundo. Não para sermos todas amigas mas para trocarmos experiências, só nós é que sabemos o que é ser actriz negra em Portugal.

Nós queríamos que fosse uma aurora negra feliz. O nosso objectivo era que todas as actrizes negras pudessem fazer aquela aurora. A contarem as suas histórias, as das suas mães e avós.  Queríamos ter, pelo menos, 30 mulheres em palco mas não conseguimos financiamento.

Queríamos que o negro tivesse uma conotação positiva. De resto, queríamos ser livres na criação e o espetáculo tinha de agradar às nossas mães.

E elas gostaram?

Ficaram orgulhosas, mas acham-nos um pouco ousadas.

É mesmo necessário questionar a ausência dos diferentes corpos nos espaços, sem tabus, para não perpetuarmos convenções obsoletas. Temos de o fazer sem medo. Somos actores, agentes da acção. Agir com a coragem, que vem do coração, é mais pleno. Infelizmente, ainda temos de falar de questões de género, de questões raciais.

Isso também é um privilégio. Eu aproveito a minha visibilidade para reclamar constantemente o lugar da nossa existência, quando só quero falar de amor, paixão e saudade e de relações efémeras e de relações para a vida. Há pessoas que podem ir ao Teatro Nacional Dona Maria II falar da chuva. Quem me dera ter isso. Não teres de falar de certas coisas. Parece que ficamos presos a uma responsabilidade, a uma missão.

 

Eu quero falar desta nossa conexão com o Cosmos. Essa coisa de estarmos num corpo e sermos uma alma, nós termos uma essência e adquirirmos uma personalidade. O que é que nós, seres humanos, nos estamos a fazer? Quais são as nossas amarras? O que é que seria concreto juntarmo-nos e fazer para mudar este mundo? É aqui que está a minha cabeça agora.

Falemos, então, de sonho e utopia.

Utopia. É uma das minhas palavras preferidas. Bem romântica. Desejo muitas coisas mas são coisas muito simples. Que todas as pessoas possam existir sem constrangimento. Que não haja constrangimento nos encontros de pessoas de origens diferentes. Que o afecto possa reinar. Que possamos coexistir com as nossas diferenças. Que não existam relações tóxicas, nem de espaços e territórios. Que eu possa ser bem-vinda em todos os lugares. Que o meu cabelo não seja um motivo de constrangimento no meu trabalho. Que eu possa ir a uma loja onde não pensem que vou roubar ou que não tenho poder económico para comprar.

 

Coisas muito simples, né?

 

É!

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